Manifesto de músicos e editoras acirra luta com Google por renda do Youtube

Quanto vale o play? Se uma música bomba no YouTube, quanto e como o Google deve pagar ao compositor dela? No Brasil, são perguntas sem resposta certa. Resultado: a cada clique que você dá em um clipe, aumenta não só o número de views que aparece ali embaixo do vídeo. Por trás, nos bastidores, cresce também a briga pelo lucro entre os donos do site e os donos das composições.

 

De um lado, grupos que representam compositores brasileiros, como o Procure Saber, de músicos como Caetano e Gil. Do outro, o Google, dono do YouTube, que ajuda a revitalizar a indústria musical, mas é alvo de demandas por mais pagamentos de direitos autorais. "O Google avança sobre o direito dos criadores", diz manifesto divulgado nesta semana pelo Procure Saber e por grandes editoras – empresas que administram as obras dos músicos.

A nova carta (leia texto completo) é mais um capítulo de uma briga que se arrasta desde 2013. Representantes do Google dizem ao G1que a empresa se esforça para pagar aos músicos brasileiros, tanto que já depositou R$ 8,8 milhões em juízo, no processo que ela mesma abriu na Justiça do Rio, para esclarecer como e a quem pagar pelos direitos autorais de músicas no YouTube.

Qual é a queixa?

O Google força autores a aceitar qualquer coisa, oferecendo 25% menos que o devido, dizema empresária Paula Lavigne (Procure Saber) e executivos brasileiros dos braços editoriais das três grandes gravadoras do mundo: João Pereira (Warner),  Marcelo Falcão (Universal) e Aloysio Reis (Sony), da União Brasileira de Editoras de Música (Ubem) – o último também da UBC (União Brasileira de Compositores). Eles não aceitam 75%: é tudo ou nada.

Enquanto isso, nada chega aos compositores. Não que todos os astros estejam com bolso vazio. O Google se entendeu com gravadoras e paga em dia a parte relativa a artistas que lançam as músicas. O problema é a parte dos autores. Exemplo: Marcos & Bellutti ganharam certinho pelos 120 milhões de cliques em "Domingo de manhã". Já o compositor do hit, Bruno Caliman, ainda não recebeu sua parte, graças ao impasse entre Google e editoras.

Conversa complicada

A última audiência de conciliação, no dia 24 de agosto, terminou sem acordo. Foi mais um sinal de que o Brasil chega à era da música digital sem regras claras para o novo jogo. "O modelo de gestão coletiva de direitos autorais no Brasil é uma 'jabuticaba', ou seja, uma coisa totalmente sui generis, com funcionamento todo próprio", diz Mariana Valente, diretora do grupo de pesquisa InternetLab.

Clipe 'Domingo de manhã', por exemplo, já rende royalties a donos da gravação, Marcos & Belutti, mas não a dono da composição, Bruno Caliman (Foto: Reprodução / YouTube)Exemplo: Clipe 'Domingo de manhã' já rende a donos

da gravação, Marcos & Belutti, mas não a dono da

composição, Bruno Caliman (Foto: YouTube)

Mariana é coautora do livro recém-lançado "Da rádio ao streaming – Ecad, direito autoral e música no Brasil" (Azougue Ed.), fruto de estudo do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas. "Com a Internet, estamos falando de usos de música sem fronteiras, mas os sistemas de direitos autorais continuam sendo nacionais. A gente buscou mostrar, no livro, como parte relevante dos conflitos está localizada justamente aí", diz.

Como surgiu o impasse milionário?

Outra pergunta: músicas em streaming, em serviços como YouTube e Spotify, são uma forma de execução pública, por estarem disponíveis a todo mundo na internet, ou serviço individual, por serem acessados por uma pessoa de cada vez? Mais uma resposta que você não vai achar na Justiça brasileira. Parece só um detalhe, mas é a origem do impasse milionário.

No Brasil, quem recolhe e repassa direitos de autores por execução pública, como shows e rádio, é o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Se a rádio toca "Domingo de manhã", paga os direitos autorais ao Ecad, que repassa a Bruno Caliman. Já para outros usos, como a gravação de um disco, o autor negocia, através de uma editora, o valor para liberar a gravação e a venda do álbum com sua composição, sem passar pelo Ecad.

Justiça indica cobrança imprópria, mas não bate martelo

O Google pagou ao Ecad entre 2010 e 2012. Depois que o acordo venceu, a empresa quis rever a definição de se o YouTube é mesmo execução pública. Outros serviços de streaming já questionaram a mesma coisa. A maioria das decisões é de que streaming não é execução pública, mas ainda não há decisão definitiva no Superior Tribunal de Justiça (saiba mais).

O Ecad e a Ubem, que reúne as maiores editoras do país, tinham um acordo até 2015: a primeira repassaria 75% dos direitos autorais de streaming, e a segunda, 25%, em parcela relativa a execução pública. É este, exatamente, o percentual da discórdia, que o Google se recusa a pagar sem definição da Justiça.

Vai pagar quanto?

Cartela (Foto: Arte G1)
Cartela 2 (Foto: Arte G1)

O contrato foi confidencial, mas no processo foi revelado que o acordo inicial previa repasse total de 4,8% do faturamento do Google com a publicidade nos vídeos do YouTube. Isso significa que, ao contestar os 25% desse total de 4,8%, o Google oferece 3,6% da publicidade (o faturamento não tem valor divulgado). Caso a Justiça determine que há execução pública no streaming, a empresa diz que pagaria essa parte, como faz em outros países.

Executivos das editoras dizem que a empresa deve pagar os 4,8%, cumprindo o acordo inicial, sendo ou não relativos a execução pública. "É uma humilhação que o brasileiro receba muito menos que o resto do mundo", diz João Pereira. Representantes do Google negam, dizendo que a parcela no Brasil é maior que vários países da América Latina, por exemplo.

Já o Ecad reafirma sua posição de que streaming não é serviço individual. "Se a transmissão pela internet tem por finalidade que a pessoa escute a música, e não que tenha cópia de arquivo (download), é execução pública", diz a superintendente Gloria Braga. Ela exalta a representatividade do Ecad, que já arrecada neste setor para todos os autores brasileiros há mais de quatro décadas.

Os editores brasileiros dizem que a negociação com o Google é mais difícil que com outros serviços de streaming, como Spotify e Apple Music. Mas essas plataformas, ao contrário do YouTube, são exclusivamente musicais e têm assinatura paga. Então, não dá para usar os mesmos parâmetros, rebate o Google.

No início do processo, houve briga também sobre como seriam tratados os dados do enorme banco de músicas disponíveis e autores cadastrados. As editoras dizem que essa parte já foi resolvida, e a disputa agora é mesmo sobre o dinheiro.

Procure Saber x Google

Ao assinar o manifesto, os músicos do Procure Saber fortalecem o lado das editoras na briga. Editoras já representam os músicos no papel, mas muitas vezes entram em conflito com eles — já que elas são intermediárias que negociam as obras musicais e podem ficar com cerca de 20% da renda dos compositores. Mas nesse caso, as queixas estão no mesmo compasso.

O Google reafirma seguir todas as regras e diz querer que o dinheiro chegue aos artistas. Mas, ao mesmo tempo, a empresa não consegue negociar individualmente com cada autor, por isso fecha estes grandes acordos pelo mundo com os intermediários que são indicados por eles para negociar suas composições – as editoras.

Paula Lavigne cita queixas de outros músicos do mundo, como Taylor Swift e U2, por repasses mais justos do YouTube. "O descontentamento é geral, não é de alguns artistas e autores, e não só no Brasil, é no mundo inteiro. A Procure Saber representa vários autores e artistas brasileiros que estão sendo prejudicados pelo processo movido pelo Google."

Taylor Swift se apresenta no Rio em show fechado em 13 de setembro de 2012 (Foto: Nestor Javier Beremblum/LatinContent/Getty Images)Taylor Swift assinou carta por regras mais justas

para YouTube (Foto: Nestor Javier Beremblum/Latin

Content/Getty Images)

O Google fechou neste ano com pequenas editoras brasileiras e já paga a elas direitos autorais do YouTube – na proporção que defende na Justiça. O Procure Saber vê isso como pressão para entidades maiores aceitarem um acordo desfavorável.

A dona do YouTube diz que isso mostra a intenção de não deixar músicos sem direitos, assim como depósitos trimestrais em juízo – o valor já passou de R$ 5,8 milhões a R$ 8,8 milhões. Paula Lavigne e os editores afirmam que a quantia é menor do que o Google deve. A empresa diz que o valor é estimado e pode aumentar quando for analisado o repertório de cada editora.

O Google lembra o investimento em prol dos artistas com ferramentas como o ContentID, que permite aos músicos arrecadarem direitos autorais por vídeos publicados por outros usuários com suas músicas, ou pedirem a retirada do conteúdo. Na carta assinada por músicos internacionais, eles pedem ainda mais controle sobre o uso de suas obras.

E agora, quem poderá resolver?

O Ministério da Cultura chegou a fazer consulta pública sobre streaming, mas não regulamentou – assim como vários pontos da Lei de Direitos Autorais de 2013, que poderia dar transparência para a ação das entidades musicais e criar mediação para conflitos, mas ainda precisa ser colocada em prática de verdade e é ainda é contestada por Ecad e UBC no Supremo.

O sistema de direito autoral no Brasil "veio sendo construído há décadas e merece muitas críticas, e ao mesmo tempo modificá-lo não é simples  – há muitos acúmulos de poder", diz Mariana. Por outro lado, cresce o poder das empresas globais de streaming. Uma decisão da Justiça sobre execução pública pode amenizar a batalha, mas dificilmente encerra a guerra.

Fonte: http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/09/manifesto-de-musicos-e-editoras-acirra-luta-com-google-por-renda-do-youtube.html / Foto: Divulgação / Procure Saber / Por Rodrigo Ortega

Eles rejeitam pagamento do Google sem parcela relativa a execução pública. Com R$ 8,8 milhões parados em juízo, autores do Brasil seguem sem receber.